E A C O E L H O

UM PRETENSO POETA

Textos

O TIRO QUE SAIU PELA CULATRA

Sexta é dia de “cotovelo no balcão”.

Explico. É dia de ir ao boteco, beber uma cerveja, mas no balcão. Nada de mesa, de conforto. Nada melhor que um banquinho alto e os cotovelos apoiados no balcão. Se não tiver mais banco, tudo bem, melhor ficar de pé e os cotovelos ainda mais apoiados.

E a cerveja rolando, enquanto os papos também rolam. E como rolam. No começo rolam, depois da segunda, terceira, os papos já começam a tropeçar. Tropeçam em mentiras, no mínimo em exageros. Até que a língua também começa a tropeçar nos dentes, na bochecha e quando começa a se enrolar, somente aí é a hora de ir.

Quer dizer, seria a hora de ir embora. E nessa hora começam as saideiras e acabam é prendendo mais e mais. Somente as caideiras é que resolvem. Sim. O fato da língua começar a tropeçar, não é hora de ir. Somente quando as pernas começam a lembrar que existe dois joelhos e esses já fraquejam, então o manguaça se manca e vem com a velha desculpa de que “tenho que ir embora”.

Nesta sexta não foi diferente. Aliás, foi. Evidente que o transcorrer do balcão, dos cotovelos, dos papos, da cerveja rolando e a língua também, foi de extrema semelhança, mas algo de novo veio a tona nas conversas de balcão.

Pois que o boteco desta sexta, na realidade é um restaurante especializado em almoços. Se segunda a quinta fecha as seis da tarde. Sexta é uma exceção a regra. Na sexta, o restaurante, depois, das seis, vira boteco dos mesmos e assíduos, todos muito mais amigos que clientes.

E não adianta o proprietário dizer que quer fechar, que quer ir embora, que a cerveja acabou, que tem compromisso, que a esposa está implicando. Não adianta. Enquanto as pernas não lembrarem dos joelhos e que esses estão bêbados, os manguaças não tiram os cotovelos do balcão, o copo da boca e não param de contar suas aventuras, vantagens e fazer planos mirabolantes para resolver todos os problemas do país e do mundo.

Hoje foi diferente. O proprietário do restaurante/boteco se revoltou. Eis que o italiano boa gente, gentil (além de mão fechada) se revoltou. Queria porque queria ir embora, fechar a bodega. Usou de todos os argumentos para fazer com que os manguaças fossem embora e nada. Todos os argumentos foram rechaçados.

Foi então que ocorreu o inusitado, ou melhor, o desabafo. Foi então que a síndrome, o cume, da revolta se manifestou. O “proprietário” encostou os cotovelos no balcão, apoiou o rosto nas mãos e numa mistura de desespero, angústia, desilusão e revolta começa o seu discurso desesperado.

Desabafou ele:

“Quando menino, eu trabalhava na lavoura, de sol a sol. E tinha que obedecer meu pai, que mandava fazer isso, fazer aquilo e mais aquilo. Então prometi a mim mesmo que quando crescesse, iria me livrar daquela obediência. Cresci e fui para a cidade grande e arrumei um emprego. Não mudou nada. Tinha que obedecer o chefe, que mandava, mandava e eu tinha que obedecer.

Então resolvi que não iria mais obedecer ordens. Comprei um caminhão. Caminhão meu. Eu era o dono e pronto. Nada mudou. Tinha que obedecer os clientes, os conferentes, que ditavam as ordem e eu tinha que obedecer.

Não sosseguei. Queria ser dono do meu nariz. Então resolvi que iria abrir meu próprio negócio. Que iria ser dono e fazer o que quisesse. Então abri esse restaurante. Achei que era dono, patrão. E sou. Sou patrão, mas não mando no meu nariz. Seus fedorentos, seus manguaças, eu sou dono desse negócio aqui e quero ir embora, quero fechar e vocês não deixam.

Vejam só. Achei que não mais precisaria obedecer esse ou aquele. E aqui estou tendo que obedecer vocês. Quero ir embora e vocês não deixam. Estão há mais de uma hora bebendo as saideiras e eu tenho que continuar obedecendo”.

Não fosse o fato da esposa do revoltado estar ao seu lado, aliás, apoiando-se na sua cintura, pois, os joelhos já não mais a sustentavam, ele certamente começaria a chorar de revolta. Mas segurou, engoliu a revolta, passou as mãos pelos cabelos, apoiou mais forte os cotovelos no balcão e desconsolado teve que engolir em seco o pedido de mais uma saideira.

É... quem manda...

E assim, foram mais alguns saideiras e outras caideiras. E o patrão, o proprietário ficou ali segurando, revoltado mas segurando o desconsolo de que mesmo tendo o seu próprio negócio, continuava obedecendo. E pior, obedecendo manguaças cotidianos.
Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 03/03/2014


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