E A C O E L H O

UM PRETENSO POETA

Textos

A PROFECIA DO REI




Quem tem mais de 50 anos de idade, com certeza lembra-se do milésimo gol de Pelé. Pênalti, Maracanã lotado, a torcida do Vasco torcendo para sofrer um gol, desde que fosse dele, o Rei. Desde que fosse o milésimo. Desde que ficasse para a história. E ficou.

E o Rei bateu, fez e correu para os repórteres. E não correu para um microfone, para enaltecer e valorizar o gol. Milésimo. Nem o soco no ar ele deu, como fazia normalmente. E correu até a beirada do campo, achou um repórter, empunhou o microfone e disse...

Não lembro exatamente das palavras do Rei. Mas lembro sim da mensagem, do contexto. Disse ele: Vamos cuidar dos meninos. Vamos cuidar dos meninos. Se não cuidarmos dos meninos do morro, eles crescerão famintos e famintos descerão o morro.

Assim profetizou o Rei. Não ouvimos o Rei. Os meninos cresceram e descem os morros em busca daquilo que lhes foi negado pela sociedade, pela elite, pelo estado. Negaram-lhes cama, comida, brinquedo, escola e perspectivas. Roubaram e continuam furtando até os seus sonhos.

Sim. Os meninos cresceram. Desceram o morro. Uns foram abatidos. Outros se reencaminharam. Mas muitos deles estão encarcerados, revoltados, famintos. Não brincaram, não foram para a escola, não sonharam os sonhos de menino.

Frustrados querem agora sonhar. E sonham. Sonham a vingança do morro. Sonham em pagar com a mesma moeda a violência que sofreram quando meninos. E seus sonhos são partilhados com outros tantos meninos que ainda estão nas ruas, que ainda sofrem as mesmas frustrações, que ainda não conseguem sonhar diferente. Sonham os mesmos sonhos dos meninos do milésimo gol. O único sonho que lhes resta. Pagar com a mesma moeda.

O Rei ainda vive. A mazela social também. O Rei ir-se-á algum dia. Mas persistirá a ganância, persistirá a avareza social. E os meninos do morro continuarão coibidos de sonhar. Sonharão quando crescidos. O sonho de vingar as faltas que lhes foram impostas.

Sim. Os meninos do morro continuarão crescendo... E vingando. Até que a morte calem seus distorcidos sonhos.



Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 15/11/2012


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras