E A C O E L H O

UM PRETENSO POETA

Textos

TEMPESTADE

O tempo se fechando, o céu se encobrindo com as negras nuvens que vão tomando tudo. É temporal que se aproxima. As folhas começam a balançar levemente. É vento que prenuncia. Os pássaros passam apressados, buscando refúgio, lá para as bandas contrárias da encosta, onde o vento não os atinja tão fortemente.

Olho pela fresta da pequena janela de madeira da casinha onde moro. Olho o céu ficando mais e mais negro, o vento chegando......... Longe, no morro, já noto o vento forte e a chuva vindo. E eu sozinho ali, no casebre escondido sob as árvores. Um casebre de madeira já envelhecida pelo tempo, coberto com telhas de calha, empretecidas.
 
O vento chega, rajadas fortes entortam as árvores. Eu com os olhos esbugalhados no buraco da janela, já mal enxergo o tempo lá fora. A trovoada cobriu o céu, escureceu, fazendo noite em plena tarde. As rajadas aumentam, a casinha estrala e o medo vai me aterrorizando.

Saio da janela. Quando me viro para dentro da casa não enxergo nada. Tudo escuro, bem mais que lá fora. O vento entrando pelas gretas das tábuas que cercam a casa. Remexendo os panos pendurados, barulhando as panelas dependuradas na cozinha. Uma delas cai......

Escuto o vento assobiando lá fora. A chuva também vai aumentando. Parece que o mundo vai cair sobre a casa, sobre a minha cabeça, sobre a minha vida ainda tenra. Lembrei de acender uma lamparina para clarear um pouco, mas o vento que entrava pelas gretas me lembrou que não adiantaria. Que o vento apagaria a chama. O jeito era sentar sob a mesa, como fora ensinado, rezar e esperar a tempestade passar.

Assim fiz. Corri para debaixo da pequena mesa. Fiquei de cócoras, as mãos juntadas e a cabeça tentando recordar a reza. E rezava e me perdia nas palavras, cada vez que um trovão roncava e roncava cada vez mais forte. Parecia que iria rachar o céu, a terra. Que partiria a casa no meio.

Flesch de luz já entravam pelos buracos das tábuas da casa. Minha reza não acalmava a tempestade. O zumbido do vento, o barulho da chuva e os trovões me faziam interromper a oração. Fechava os olhos para não ver nada, mas os ouvidos denunciavam tudo.

Ouvi certa vez, que quando tem trovoada, quando a chuva caiu mais intensa, isso abranda o vento. Meu medo era o vento, que já até mexia com a casinha que me acolhia, toda vez que soprava uma rajada mais forte. E chovia mais e mais, mas o vento não dava trégua. Por instantes até calava, para vir novamente e ainda mais assustador, mais e mais barulhento.

A tempestade continuava. E numa dessas rajadas, escutei barulho de telhas sendo sopradas pelo vento, levadas como folhas secas. Um calafrio percorreu todo meu corpo pequeno e trêmulo. Tirei a cabeça debaixo da mesa, espiei o alto e já vi um buraco no telhado. Mais uma rajada e mais telhas voaram. E outras e outras e a chuva já caindo dentro da casa, o céu aparecendo iluminado pelos relâmpagos.

Eu via o vento vindo mais forte, levantando a casa comigo dentro, a mesa junto. Alçando-nos ao céu e levando de encontro à encosta e nos espatifando. A casa, a mesa e eu. Isso me aterroriza. Outro estrondo e via a cada caindo e eu agonizando em meio aos escombros.

Recolhi-me sob a mesa, agora encolhido. Esqueci as rezas. Acreditei que Deus do Céu não estava nem aí pra mim. Não mesmo. Certamente também estava preocupado com a trovoada. Talvez também estivesse caindo algumas telhas do céu. Ou, quem sabe, estava me castigando pelo fato de ter batido na minha irmã hoje pela manhã. Ela tinha mexido no meu caderno e eu dei uma tunda nela. Claro que apanhei também da minha mãe, mas bem que ela disse, que Deus castiga quem bate na irmã mais nova. Nunca mais bateria na minha irmã. Podia até rasgar o caderno, pegar meus carrinhos. Podia fazer o que quisesse.

Pois é. Minha mãe com minha irmã tinham ido para a cidade. Meu pai estava trabalhando e eu sozinho ali. E assim envolto nos medos e nas lembranças, mal vi mais e mais telhas sendo levadas. O buraco no teto ia crescendo. A chuva continuava e o vento também. E num repente, numa rajada ainda mais forte, grande parte das telhas se foi. Ficavam só os sarrafos quadriculando o céu que vezes em quando acendia.

O medo aumentava. Ainda bem que tinha a mesa, que me parecia pesada e não seria arrastada pelo vento. Lembrei do meu cachorro, coitado, que tinha medo de trovão. Onde estaria o coitado. Lembrei das galinhas no galinheiro, se também havia sido descoberto pelo vento. Lembrei do meu pai, como estaria, se lá também ventava. Da minha, mãe, da minha irmã. Eu tinha a mesa. E eles?
 
Mais uma rajada. Mais telhas agora caindo dentro do casebre. Chuva e mais chuva dentro da casa. Mais uma rajada e a casa estralava. Os relâmpagos fortes me mostravam o estrago. Roupas já espalhadas pela casa, encharcadas. Barulho na cozinha de panelas voando. Não importava. Eu tinha a mesa, que era forte, pesada. É, ainda bem que eu tinha a mesa.

E ainda debaixo da mesa eu acurei os ouvidos. Parecia mentira. O vento acalmava, a chuva acalmava. Restavam trovões já longe. Relâmpagos já mais esparsos. Tirei a cabeça debaixo da mesa. E já via o céu, clareando.

Sai, fui à janela, espiei pelas frestas. A tarde já estava refeita. Virei a tramela e abri a janela. Já não chovia mais. Olhei árvores esgarçadas, galhos quebrados, folhas por todo lado. Mas as galinhas já estavam no terreiro, fartando-se nos insetos desprotegidos. A vaca pastando, sossegada. O mundo não havia acabado. Estava intacto. O céu estava inteiro no lugar. Caramba, Deus me escutou. Demorou mas escutou.

Muito melhor que isso. O Sol já ressurgia. A tempestade já não existia, que não fosse às minhas lembranças, aliás, nas imagens que eu ainda via e que certamente guardaria para sempre. O sol já se aproximava do morro e a tarde dava seus primeiros sinais de agonia. Mas os raios do sol ainda eram fortes e brilhavam nas gotas das folhas das laranjeiras, feito diamantes jogados nas folhas.

Voltei para dentro da casa. Era um estrago só. Cacos de telhas para todo lado. Todo o assoalho da casa molhado. Fui ao quarto, único quarto e a cama estava toda molhada. As roupas molhadas, sujas com as cinzas pretas caídas do telhado.

Na cozinha era um bagunça só. Panelas caídas por todo lado. A chapa do fogão a lenha toda molhada, suja, mais cacos de telhas por todo lado. Só a mesa, a minha bendita mesa ali, intacta, robusta, protetora. Minha protetora, minha guarida.

Olhei o teto, poucas telhas ainda o cobriam. Ficou um desenho interessante. O céu realmente estava riscado pelos sarrafos da cobertura. No auto, um azul límpido, bonito. Estava absorto e nem escutei minha mãe chegando. Quando percebi já estava entrando pela porta, com minha irmã no colo e no rosto corriam lágrimas desesperadas. Pôs a minha irmã no chão e correu me abraçar. Não entendi nada, mas que o abraço foi bom, isto foi.

Naquela noite dormimos praticamente ao relento. No dia seguinte meu pai recobriu a casinha, minha mãe a limpou. Tudo voltou ao normal. Menos as minhas memórias. Até hoje, sempre que avisto uma trovoada se formando, sempre que sinto a ameaça dos ventos, sinto o mesmo medo e rezo a mesma reza, com o mesmo fervor.

Sempre que ameaça uma tempestade, sinto o vento arrancando as telhas, o teto, arrastando minha casa e a arremessando no morro.
Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 04/06/2011
Alterado em 04/06/2011
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