E A C O E L H O

UM PRETENSO POETA

Textos

O DESPERTADOR

Minha memória guarda histórias que compõem o teorema da minha vida. Meu pai já era um contador de causos e os contava sempre como absolutamente “verdades acontecidas” e que ninguém se atrevesse ao menos a fazer perguntas sobre a veracidade dos fatos. E como “filho de peixe, peixinho é”, por favor, não questionem a realidade dos fatos que aqui vou relatar.

No vilarejo em que eu me criei, chamado Cedro, fincado no sertão entre as serras de Camboriú, cidadezinha grudada em Balneário Camboriú, esta sim cidade abençoada por Deus com a mais bela e bem desenhada praia deste Brasil privilegiado, morava um casal de velhos solitários, chamados Conrado e Catarina. E sobre os dois, muitas histórias, todas verdadeiras, corriam de boca em boca, nas longas noitadas de conversas nas casas lumiadas com "pomboca", sonorizada pelos programas de rádio, normalmente de músicas caipiras, cujas ondas AM eram captadas lá da longínqua São Paulo, através de antenas externas, formadas de longo fio de cobre esticado entre dois altos bambus fincados nas extremidades do terreiro.

Uma das histórias, conta que o velho Conrado um dia foi lá na "venda" da freguesia e comprou um relógio despertador, que achava muito bonito para enfeitar a cristadeira da Catarina. Como não sabia ver as horas em relógio (era especialista em ver as horas pelo sol ou pela lua – em noite de lua nova ou quando a chuva vendia preguiça, só se situava das horas já na madrugada, com o contar dos galos), o dono da Venda ensinou-o rapidamente a “ler as horas” no relógio despertador de corda, que comprou na caderneta de fiado.

Chegou em casa, o presente debaixo do braço e certo que a Margarida iria gostar. Até imaginou que o presente iria lhe render umas “bobiças” no decorrer da tarde de preguiça que se avizinhava naquele sábado de sol quente e úmido. Deu corda no relógio, como ensinou o Seu Minella e o pôs sobre a cristaleira que brilhava com as panelas dependuradas.

Rememorava as aulas do Seu Minella sobre como ler as horas. Se o ponteiro pequeno estivesse no 1 e o grande no 12, era uma hora. Se os dois ponteiros estivem a pino no número 12, então era meio-dia. Isto, os dois ponteiros no 12, meio-dia. Os detalhes não importavam.

Almoçou, aquele velho pirão com galinha ensopada, colorida com o colorau extraído do alecrim que habitava no quintal, e foi tirar uma soneca com a Margarida, de fartos seios e grossas coxas. Fechou a janela do quarto, escureceu o ambiente e usou a Catarina, que estava contente com a decoração da cristaleira e que iria convidar as comadres para, no domingo, depois da missa, vir ver o presente do Conrado.

Meia-tarde levantou, foi cortar trato para as vacas, picou na máquina de cortar trato, trouxe as vacas do pasto para a estrebaria e já noitinha munido do banquinho e da balde, foi tirar leite da Mimosa e da Estrela. Entrou em casa já noite alta. A Catarina na lida no fogão, lenha fazendo labareda  e a chaleira chiando, as panelas fervendo. Foi lavar as partes na bacia grande com água amornada, passou água nos cabelos, penteou, ficou todo arretado e foi para a mesa para a ceia preparada com o carinho da Catarina.

Cearam e como já estava programado, foram para a casa do Compadre Rosário, escutar rádio. O relógio novo ficou sozinho em casa, assentado na cristaleira. O ponteiro pequeno estava no 8 e o grande estava no 2. A Catarina não entendeu nada, era melhor olhar a lua. Olhou, fez as contas: oito horas passadas.

Foram então para a casa do Compadre. Sentaram nos bancos da mesa grande, defronte ao Rádio que ficava sobre o armário. Escutaram muitas modas no rádio. Tinico e Tunoco, Cascatinha e Inhana e outros cantadores. Tinha hora que o som quase fugia. Vinha uma zuada. Sinal de que iria chover, segundo o Conrado. Comeram cuz-cuz, broa de milho, regado com aquele café torrado em casa e socado no pilão esculpido pelo Compadre Rosário, de um toco de madeira de lei.

Lua alta no céu, noite clara, estrada de chão lumiada pela lua e lá se foram Conrado e Catarina para casa, esbaldados de tanta moda caipira. Coisa boa. Ainda iriam comprar um rádio para eles. Se a roça de arroz desse boa, iriam comprar. E lá se foi o casal mateiro, caipira, estrada a fora, a caminho da casa e uma vontade latente de chegar em casa, olhar o relógio novo e ir para o ninho, aninhar de novo. Fazer bobiça de novo, enquanto as corujas e os grilos ficariam do lado de fora fazendo alvoroço.

O Conrado distorceu a tramela, abriu a porta, sacou do isqueiro de querosene, ascendeu e foi em busca da lamparina. Encostou o isqueiro no pavio da lamparina, que já iluminou a cozinha inteira. Conrado foi direto com a lamparina para ver de perto o Relógio. Olhou os ponteiros. Os dois juntinhos trepados no 12. Não podia. Algo estava errado. Tava enguiçado o triste.

Na segunda-feira o Conrado perdeu o serviço para ir à venda do seu Minella, para devolver o relógio. Olha aqui seu Minella. Esse seu engenho está doido. O senhor não disse que quando os dois ponteiros estivessem em cima do 12 era meio-dia? Eis que cheguei em casa no sábado, noite alta e o danado tava marcando meio-dia? Troca, troca ou eu pago a diferença e levo um rádio............
Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 16/01/2011
Alterado em 16/01/2011
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